quinta-feira, 24 de março de 2016

Os tempos mudaram...

É difícil revisitar as esquetes clássicas sem revisitar o pensamento social e político do tempo em que elas eram executadas nos picadeiros. E isso inclui voltar o olhar pra detalhes cômicos daquele tempo que hoje seriam bastante discutidos, principalmente em São Paulo. 
Uma mulher não paqueraria um homem no meio da rua. Um homem só se apaixonaria por outro se isso fosse retratado como piada principal e, seus trejeitos femininos, o arremate da esquete. 

Trata-se da cena A Flor Maravilhosa (ou Cheira Flor, tem muitos nomes), em que dois palhaços, originalmente, discutem sobre a sedução de mulheres com uma suposta flor encantada da Índia, que deixa a pessoa que aspira seu perfume apaixonada por quem a ofereceu. Um deles conquista três palhaças para provar ao outro o poder da flor. O segundo, obviamente, fica tentado pra fazer o mesmo e, por ser desajeitado, arruma confusão com o irmão de uma moça que passa. Por fim, é o irmão que cheira a flor e se apaixona pelo palhaço, que sai correndo findando, assim, a cena.

A esquete é simples. Qual a discussão?



Em nossa oficina, por falta de homens o suficiente pra completar três grupos, duas atrizes fizeram o papel principal, seduzindo, portanto, os garotos (que se revezaram entre as outras cenas). Foi aí que se deu a reflexão. 
A época dessas esquetes era uma época em que havia um comportamento vigente na sociedade, principalmente para as mulheres, comportamento que se reflete ainda hoje, e que aos poucos vai sendo questionado e quebrado. Duas mulheres, naquele tempo, não fariam as protagonistas, pois elas não "cantariam" um homem na rua. Não era comum a mulher paquerar o cara. Hoje estamos num período de desconstrução em que esse comportamento ainda não é completamente aceito, mas muito mais aceitável. 
Tem mais: no final da cena, o irmão da moça cheira a flor por acidente e se apaixona pelo palhaço. Onde está a graça? Ou melhor, onde estava a graça? Ao cheirar a flor, o irmão, delegado, começa a se afeminar e a se insinuar para o palhaço. A graça aqui estava no jeito afeminado do homem que entra viril e sai feminino.

A feminilidade de um homem pode ainda ser objeto de piada?

As discussões estão em voga. As feministas, LGBT, raciais... Como manter a estrutura dramatúrgica, focando mais no jogo e menos nos gêneros e, ao mesmo tempo, levantando esta discussão? O que está feito, está feito, e revela o pensamento de uma época, mas e hoje? 

Isso me lembra uma cena que fiz com o palhaço Magrólios (Jeff Vasques) no Barracão Teatro, num exercício proposto por Ésio Magalhães em que dois palhaços tinham que lutar contra o outro socando uma garrafa. A garrafa apanhava e o palhaço sentia as dores. Em determinado momento os palhaços começaram a descobrir que se um lambia a garrafa o outro sentia prazer. E, até o final, os dois palhaços (homens) estavam acariciando e lambendo a garrafa só porque isso causava prazeres. E risos, pelo absurdo da situação e pelas reações dos dois.

Os tempos mudaram e as gags clássicas precisam acompanhar esta mudança, foi esta a conclusão que chegamos juntos numa discussão, a única conclusão de uma série de perguntas que nos fizemos e que só a prática pode responder. 
Marcio Douglas, que é quem está de guiando magistralmente este barco, conta que, em suas experiências, constatou, pelo termômetro que é o riso do público, que uma palhaça apanhar de um palhaço não funciona tanto. Um chute e um tapa tem lugar e personagem certo pra acontecer.
É possível o palhaço ser um instrumento de reflexão, e quase necessário, uma vez que ele é o transgressor da ordem. Ao fazer uma esquete clássica é importante pensar sobre isso, para de fato cumprir seu papel, e não acabar reforçando um preconceito.

Lucas Nuti

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