Uma mulher não paqueraria um homem no meio da rua. Um homem só se apaixonaria por outro se isso fosse retratado como piada principal e, seus trejeitos femininos, o arremate da esquete.
Trata-se da cena A Flor Maravilhosa (ou Cheira Flor, tem muitos nomes), em que dois palhaços, originalmente, discutem sobre a sedução de mulheres com uma suposta flor encantada da Índia, que deixa a pessoa que aspira seu perfume apaixonada por quem a ofereceu. Um deles conquista três palhaças para provar ao outro o poder da flor. O segundo, obviamente, fica tentado pra fazer o mesmo e, por ser desajeitado, arruma confusão com o irmão de uma moça que passa. Por fim, é o irmão que cheira a flor e se apaixona pelo palhaço, que sai correndo findando, assim, a cena.
A esquete é simples. Qual a discussão?
A época dessas esquetes era uma época em que havia um comportamento vigente na sociedade, principalmente para as mulheres, comportamento que se reflete ainda hoje, e que aos poucos vai sendo questionado e quebrado. Duas mulheres, naquele tempo, não fariam as protagonistas, pois elas não "cantariam" um homem na rua. Não era comum a mulher paquerar o cara. Hoje estamos num período de desconstrução em que esse comportamento ainda não é completamente aceito, mas muito mais aceitável.
Tem mais: no final da cena, o irmão da moça cheira a flor por acidente e se apaixona pelo palhaço. Onde está a graça? Ou melhor, onde estava a graça? Ao cheirar a flor, o irmão, delegado, começa a se afeminar e a se insinuar para o palhaço. A graça aqui estava no jeito afeminado do homem que entra viril e sai feminino.
A feminilidade de um homem pode ainda ser objeto de piada?
As discussões estão em voga. As feministas, LGBT, raciais... Como manter a estrutura dramatúrgica, focando mais no jogo e menos nos gêneros e, ao mesmo tempo, levantando esta discussão? O que está feito, está feito, e revela o pensamento de uma época, mas e hoje?
Isso me lembra uma cena que fiz com o palhaço Magrólios (Jeff Vasques) no Barracão Teatro, num exercício proposto por Ésio Magalhães em que dois palhaços tinham que lutar contra o outro socando uma garrafa. A garrafa apanhava e o palhaço sentia as dores. Em determinado momento os palhaços começaram a descobrir que se um lambia a garrafa o outro sentia prazer. E, até o final, os dois palhaços (homens) estavam acariciando e lambendo a garrafa só porque isso causava prazeres. E risos, pelo absurdo da situação e pelas reações dos dois.
Os tempos mudaram e as gags clássicas precisam acompanhar esta mudança, foi esta a conclusão que chegamos juntos numa discussão, a única conclusão de uma série de perguntas que nos fizemos e que só a prática pode responder.
Marcio Douglas, que é quem está de guiando magistralmente este barco, conta que, em suas experiências, constatou, pelo termômetro que é o riso do público, que uma palhaça apanhar de um palhaço não funciona tanto. Um chute e um tapa tem lugar e personagem certo pra acontecer.
É possível o palhaço ser um instrumento de reflexão, e quase necessário, uma vez que ele é o transgressor da ordem. Ao fazer uma esquete clássica é importante pensar sobre isso, para de fato cumprir seu papel, e não acabar reforçando um preconceito.
Lucas Nuti
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